Prof. José Carlos Rocha*
Dra. Marilene Araujo**
Há mais de vinte
anos era sancionada, pelo então presidente da República Fernando Henrique
Cardoso, a lei 9.612/98 que instituiu o Serviço de Radiodifusão Comunitária no
Brasil. A lei foi uma ideia para a institucionalização de uma atividade viva e
majestosa das comunidades brasileiras, que tinham então cerca de 12000 rádios
no ar, sem autorização. Desde então, mais de 4000 mil licenças de funcionamento
para emissoras comunitárias, foram concedidas, criando-se uma potente rede de
comunicação comunitária.
Desde meados da década de 80, impulsionados pelo baixo custo da tecnologia da
FM, milhares de pessoas, grupos e entidades religiosas, estudantis, culturais,
instalavam seus transmissores de baixa potência e irradiavam as vozes que
insurgiam das comunidades.
Mas, o sonho da institucionalização das rádios, após o lançamento das Cartas de
São Paulo que deram origem ao Projeto de Lei PL 1521/96 de autoria do Deputado
Arnaldo Faria de Sá, virou um pesadelo. Ao Projeto de lei original foram
anexados outros 10, causando uma desorientação geral, oportunidade única para
que o PL fosse descaracterizado e aprovada uma lei limitante e limitada para o
Serviço. Logo, lideranças apelidaram a lei de “lei curucucu
da rádio cocoricó” – ainda hoje em vigor – porque o sinal da rádio é medido em
metros de raio.
O pesadelo não acabou com o sonho e, enquanto a repressão e o fechamento de
rádios não outorgadas seguiam firme nos governos de Fernando Henrique Cardoso,
Lula e Dilma, milhares de outorgas eram concedidas. O resultado é mais de 4 mil
rádios comunitárias outorgadas no Brasil. Com certeza um ganho para a
comunicação comunitária e para a democracia brasileira.
Os problemas trazidos, principalmente pela regulamentação da lei (decretos e
normas de caráter burocrático) limitam ainda mais a circulação da informação e
a liberdade de comunicação das emissoras. Os decretos e os regulamentos apenas
são usados para restringir a viabilidade técnica e econômica das emissoras.
Os órgãos responsáveis pela atribuição de frequência no Brasil, sobretudo a
ANATEL, confinaram milhares de emissoras em um curral onde, em muitos centros
urbanos, há apenas 1 frequência. O curral conta ainda com a determinação de
norma ministerial de uma distância entre as emissoras de apenas 4 KM, causando
um cercado de interferências e impedindo que as comunidades captem o sinal.
O resultado é a violação permanente ao Pacto São José da Costa Rica. O Estado
brasileiro vem impedindo o direito de expressão das comunidades (direito humano
de caráter universal), por meio de controle oficial de frequências
radioelétricas e de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação
das rádios comunitárias.
Outras proibições, sem pé nem cabeça, sem o mínimo de respaldo legal, previstas
nas normativas ministeriais podem ser elencadas, como a proibição de uso de
link externo para reportagens externas, dificultando que as rádios utilizem a
tecnologia para fazer transmissões fora de seus estúdios.
As proibições e restrições de tecnologia e frequência feitas pelo Estado
brasileiro ofendem o Pacto São José da Costa Rica, documento jurídico que o
Brasil é signatário. O Pacto dispõe em seu artigo 13:
3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos,
tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa,
de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão
de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação
e a circulação de ideias e opiniões.
O controle oficial para proibir o avanço da radiodifusão comunitária não para
nas frequências. A lei não traz um modelo econômico que viabilize a
sustentabilidade das emissoras. Ao mesmo tempo, as normas expedidas pelo poder
concedente têm penalizado as emissoras por divulgar qualquer preço de produtos.
Com a aposta do Estado brasileiro em criar ferramentas de restrições econômicas
e tecnológicas, o modelo de uma comunicação comunitária livre no Brasil caminha
a passos largos para o abandono absoluto.
Mas, a reorganização das comunitárias, após 20 anos, trouxe a explosão de um
modelo de sustentabilidade econômica que estimula o setor a persistir seguindo
o seu sonho. Em 2016, São Paulo cria a lei de fomento ao Serviço de
Radiodifusão Comunitária (lei 16.572/16) de autoria dos parlamentares Antônio
Donato e José Américo e o sonho refloresce na potência criada pela lei
9.612/98.
A lei abre horizontes para uma nova fase, sancionada pelo então prefeito de São
Paulo Fernando Haddad (PT) e executada pelo atual prefeito João Doria (PSDB), e
traz a figura de um Estado que passa de repressor para amigo da liberdade de
comunicação das comunidades brasileiras.
Daqui para frente, é reorganização, avanços e cobrar que o Estado brasileiro
deixe que reprimir e ser inimigo das emissoras e assumam a posição dos amigos
da comunicação comunitária com políticas públicas que a estimule. A hora é
agora, o Estado deve cumprir o Pacto São José da Costa Rica e deixar de sufocar
as emissoras por meio de políticas de repressão tecnológica e econômica.
O caminho para um novo modelo de comunicação comunitária que surgiu com as
rádios comunitárias está aberto para novos meios, mais comunicação, mais
liberdade, mais entendimento e mais democracia.
*Advogado, jornalista e professor. Professor titular de ética e legislação
da ECA-USP. Mestre em Comunicação pela Université Paris Sorbonne. Doutor em
Direito pela Faculdade de Direito da USP. Presidente do Fórum Democracia na
Comunicação
**Advogada e professora. Especialista em Direito Administrativo pela PUC-SP.
Pós-graduada em Processo Civil pela Escola da Procuradoria Geral do Estado de
São Paulo. Mestra em Direito Constitucional pela PUC-SP. Coordenadora Jurídica
do Fórum Democracia na Comunicação.